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Entrevista

Sérgio Dias e a volta dos Mutantes
O eterno mutante Sérgio Dias comenta os bastidores da volta da banda brasileira mais cultuada de todos os tempos. Animado com sua reunião musical com o irmão Arnaldo Baptista, com quem esteve rompido por mais de duas décadas, Sérgio trouxe para a banda o lendário baterista Dinho Leme e caiu na estrada com músicos que já o acompanhavam há alguns anos e com a cantora Zélia Duncan no lugar de Rita Lee, que neste primeiro momento não pode participar.

A volta dos Mutantes ocorre na rebarba de uma exposição tropicalista em Londres e é lá que rolou o primeiro concerto da banda reformada dia 22 de maio, e que será registrado em CD e DVD por iniciativa da própria banda. Os ensaios começaram em fevereiro, após reuniões de Sérgio com membros das formações dos Mutantes nos anos 60 e 70, e tomaram rumo a partir de março - quando ele, Arnaldo e Dinho sentiram que a coisa ia realmente rolar. No final de março fizeram fotos de divulgação, em abril começaram a fazer entrevistas e em maio, após três dias de ensaio no Citi Bank Hall da capital paulista, se prepararam para embarcar para Londres.


Marcelo Fróes
Fotos: Nino Andrés

Como vai você?
Cansado pra burro, bicho... Foram cinqüenta dias de ensaio... direto, bicho... Foi pesado. A gente já tinha alguns ensaios marcados pra essa semana, mas eu cancelei tudo. Depois do Palace, depois que eu vi que a gente era dono do palco, eu disse "chega, tá tudo bem". Agora é só passagem de som em Londres.

Você já vinha falando sobre a possibilidade de remontar os Mutantes progressivos.
Olha, isso tem acontecido há tanto tempo... porque todo mundo tenta fazer essa coisa acontecer. Mas uma coisa que sempre me preocupou foi esse approach de todo mundo - e até da imprensa negra, sempre botando um monte de pepino onde não tinha pepino nenhum. Eles sempre tentavam arranjar um espaço, dizendo que a gente isso ou aquilo. E não tinha porra nenhuma disso, mas isso me pirava a cabeça... entende? Eu olhava dentro do armário e não tinha esqueleto nenhum, meu! Isso era um pé no saco pra mim, então isso pra mim foi muito bom... porque eu acho genial a gente tá podendo dar um raio de espança de que - sim - tudo é possível. Aquele disco do David Byrne foi muito profético, então isso foi um negócio muito legal. Essas coisas todas que aconteceram com a reedição dos Mutantes, um mês antes eu tinha me encontrado com o Túlio, o Rui e o Pedro. A gente fez um som aqui em casa e foi fantástico, mas aí coisas foram acontecendo - uma atrás da outra - e muito rápidas, muito parecidas como no começo nos anos 60. Então, como eu tô ligado na roda da vida, eu vejo as coisas acontecerem e respeito o movimento que vai além da minha decisão. Obviamente eu dou os meus passos em relação às coisas que estão acontecendo, né? Quando eu vejo o Dinho pegar o telefone, ligar pra mim e dizer "olha, eu toco", opa, isso foi uma ficha que caiu e que foi um negócio fantástico. Eu tava só deixando o barco correr, tava lá quieto vendo a coisa rolar. Agora, quando o Dinho fala uma coisa dessas, depois de 25 ou 30 anos sem tocar, então isso é sério. E aí foi uma coisa fantástica, a gente se juntou, tocou e aí a barra pesou. Acho que isso aconteceu em fevereiro.

E agora, quando vocês estão aí firmes e fortes, como é que está sendo o comportamento da imprensa quando você dá entrevistas para divulgar uma coisa que já está acontecendo?
A gente teve que segurar muito tempo, sem poder falar nada... porque era uma coisa muito delicada. A gente não podia dizer que sim, enquanto a coisa não estivesse realmente sólida. Na primeira entrevista que eu dei, poder dizer "aqui é o Sérgio Dias dos Mutantes" me fez tremer na base.

Quando é que você sentiu que podia falar? Foi no dia em que entrou no Orkut em 14 de abril e disse "decolamos"?
Não, muito tempo antes eu já estava querendo abrir o jogo. Nesse dia eu cansei de ficar tendo que mentir pros outros. Não aguentava mais aquilo, pois não tinha mais sentido. Já estava sólida a coisa, não tinha mais porque segurar.

Como você tem sentido a imprensa?
As pessoas estão bem espantadas, e é um bonito de ver. Tem muita gente muito feliz, muita gente contente e torcendo por nós. Tem tanta coisa positiva acontecendo, a gente acabou de receber uma comenda da Câmara Municipal de São Paulo - o que foi uma coisa genial, um puta reconhecimento. Do que é que a gente tem a reclamar, honestamente? Só tem sido coisas maravilhosas. A turnê que a gente vai fazer, qualquer banda do mundo dava um bom troco pra estar no nosso lugar.

Esta formação, "limitada" a vocês três como membros originais, tem muito mais chance de desenvolver um trabalho de maior longevidade.
Com certeza, a gente não ia fazer isso só pra fazer dois shows e "até logo". Esta não é a minha intenção, não seria nunca um caça-níquel. Mutantes é uma coisa muito emocional, espiritual e física. Ou rola, ou não rola. Já tentaram tantas vezes, já ofereceram 1 milhão de dólares e o diabo a quatro. Mas nunca rolou, e não ia rolar enquanto a coisa não fosse do tipo "oi tio, vamos fazer um som?" Enquanto isso não rolasse, não faria sentido.



Como foram estes primeiros reencontros musicais com Arnaldo?
Maravilhosos, foi estupendo. Estar aqui no estúdio, olhar pra direita e ver o Arnaldo no teclado, feliz e rindo, e à esquerda o Dinho virando as baquetas do mesmo jeito que virava, é uma loucura. É maravilhoso. Os primeiros encontros foram estupendos, o Arnaldo sabia todas as letras e eu não sabia porra nenhuma. Tá tudo certo com ele, tá cantando pra cacete e tá genial.

E quanto a produto? Até bem pouco tempo atrás não havia uma pressa de se fazer nada, e eu sei que ela nem existe. Mas, no momento em que gravadoras começam a aparecer, como é que você vê a possibilidade de lançar alguma coisa ainda este ano?
Bom, a gente está gravando os shows de Londres para um DVD e um CD. De um momento pra cá a gente começou a registrar tudo, depois é que a gente vai pros Estados Unidos - pra tocar naquele monte de lugar lá. Eu tava conversando ontem com a Zélia, da gente dar um pulo lá na minha casa em Araras (RJ). A gente fica sem luz, é bem perto da casa do Arnaldo, a gente pega os violões e acende a lareira pra começar a brincar. Com certeza coisas novas irão surgir, não tem como você abrir uma antena deste tamanho e não receber sinal. O grande barato de você compor dentro de uma banda como Mutantes é você deixar tudo completamente aberto. Quando você compõe uma música sozinho, você já fecha e já a escuta inteira. Agora, quando você abre para outras pessoas do nível do Arnaldo, não tem como eu pré-programar uma música. Essa coisa tem que ter nascimento natural e seria burrice minha ou dele vir com coisa pronta de casa. Seria touca. Isso vai ser um grande barato, eu tô babando por esse momento. Ontem eu e Zélia estávamos numa festa de fechamento de ensaio, comendo um sushi e conversando sobre isso.

E quanto às músicas de outros? Quando vocês gravaram "Chão de Estrelas", havia um tom satírico. Vocês curtem compositores e cantores antigos?
Sim, sempre. É lógico, na nossa vida uma coisa que foi extremamente importante foi Demônios da Garoa. Inezita Barroso também. O lance do "Chão de Estrelas" não foi desrespeitoso, a gente só achou a letra engraçada e fez uma sátira... porque a letra era um prato cheio. Era importante desmistificar aquela coisa de que nada é intocável. Não pode ser assim. É como a música clássica; se você vai ao Teatro Municipal, você não escuta compositores clássicos atuais. Você vai lá pra ouvir de novo Beethoven, de novo Chopin e é um pé no saco. É chato, porque tem tanta gente boa e tantos compositores maravilhosos que, no fim das contas, eles passam a ser compositores de cinema. A música clássica atual está na incidental dos filmes. Existem pessoas que poderiam estar com a ferramentaria de orquestra fazendo coisas que você iria enlouquecer. Não dá pra gente minimizar a emoção humana e trancar a coisa dentro de um passado impossível de se abrir uma porta. É uma visão muito pobre.



Como é que você transa essa divisão entre Mutantes da fase progressiva e Mutantes da fase "inicial"?
É tudo uma banda só, embora tenha tido duas encarnações para outras pessoas que passaram pela banda. Pra mim não, entende? Porque eu era um mutante, sempre fui um mutante e nunca parei de ser. Nunca saí da banda, nem nada disso. Agora, quando a gente vai montar o repertório do novo show, não tem sentido tocar o "Tudo Foi Feito Pelo Sol" com o Arnaldo, entende? Agora, nada impede que eu, Túlio, Rui e Pedro nos juntemos para tocar aquilo. Por que é que Dinho vai tocar algo que não tem nada a ver com ele? São dois momentos, realmente...

O "OAEOZ" seria o elo perdido entre estas duas fases. Você acha que, se o disco tivesse sido lançado na época, as pessoas teriam uma melhor noção da transição por que a banda passou?
Com certeza, é lógico. Este disco foi perdido, ele era uma reflexão de uma geração, de um momento e que foi infelizmente foi lançado completamente fora do tempo... porque a gravadora não teve a menor noção de visão do que estava acontecendo.

De uns tempos pra cá, as pessoas também estão tendo maior noção de que "Hoje é o Primeiro Dia do Resto da sua Vida" é um disco dos Mutantes.
É lógico, sempre foi, mas a Rita Lee estava no crédito e no desenho da capa. Mas agora todo mundo sabe que aquilo foi porque a gente tinha produto demais; como a gente já tinha lançado um disco em 1972, aquele saiu assim. Então, da mesma forma que fizemos o título "A Divina Comédia ou... Ando Meio Desligado", este seria "Rita Lee ou... Hoje é o Primeiro Dia do Resto da sua Vida". Mas na época essa coisa de sair com crédito pra Rita Lee já foi por conta de uma movimentação da gravadora para que ela tivesse uma carreira solo.

Vocês têm origem na cena roqueira que girava em torno da Jovem Guarda. Como é que você via tudo aquilo?
A nossa origem é basicamente muito clássica, porque dentro de casa a minha mãe era uma grande concertista. A gente passou a infância inteira no backstage do Teatro Municipal. Meu pai era um grande cantor de ópera, um grande tenor e grande poeta. Essa é realmente a nossa base, mas depois disso pintou twist, jazz e o Arnaldo chegou a ter um conjunto de Bossa Nova. Eu tirava Les Paul, Wes Montgomery, Jimmy Smith e Nat King Cole. Era muito grande o espectro de música que a gente absorvia, então talvez por isso a gente fosse de uma certa forma tão deslocado dentro da Jovem Guarda ou do Ronnie Von. Se eu não me engano, a primeira vez que tocamos lá eu toquei a marcha turca de Mozart.

Qual a lembrança que você tem daquilo tudo? Se não tivesse rolado uma aproximação com os tropicalistas, vocês teriam prosseguido naquele universo.
Eu acho que seria impossível dos Mutantes pararem, de uma maneira ou de outra a gente iria fazer o que a gente tinha que fazer. Não resta dúvida de que o Tropicalismo sem Mutantes não existe. Isso é fato. Talvez a coisa tivesse tomado outro rumo, talvez fora do Brasil ou coisa do gênero. Mas com certeza a gente seria uma banda sobrevivente.

Sim, porque o fim da Jovem Guarda dizimou a maior parte das bandas dos anos 60. Principalmente as desconhecidas.
Sim, porque quando você fica dependente de uma situação a coisa fica realmente muito difícil, né? Você não pode colocar todos os seus ovos num único cesto... Você tem que ter diversidade e abertura pra estar sempre se movimentando.

Alguns jornalistas comentam que o rock brasileiro começou nos anos 80 ou mesmo com os Mutantes, ignorando a pré-Jovem Guarda, a Jovem Guarda e mesmo o rock brasileiro dos anos 70. Por que isso?
Honestamente eu acho que a culpa é do golpe de Estado de 1964, sabe? Eu vou isentar os coitadinhos dos jornalistas, porque na realidade existe uma coisa muito séria e que foi este golpe de 64. Ele gerou um emburrecimento da sociedade brasileira, como pátria e como tudo. Provavelmente essas pessoas são os tais "filhos do silêncio", para os quais eu compus a música. Dentro das pessoas que são realmente a inteligência social musical brasileiro, impossível que não conheçam Casa das Máquinas ou qualquer outra banda de destaque nos anos 70. Tem indivíduos que são monumentais, mas as pessoas que têm noção realmente sabem da importância de tudo isso e têm imenso respeito por todas as pessoas.

Nos últimos anos, em suas entrevistas, você sempre deixa escapar que tem muito material raro e inédito dos Mutantes. É material de todas as fases?
Sim, de todas as fases. A qualidade varia, mas pra fazer um "Anthology" com certeza temos material. Na época a gente não tinha tecnologia pra gravar separado, mas a gente tem o que era gravado em ensaio e são coisas realmente preciosas.

Você pretende realmente tirar tempo pra se debruçar sobre essas coisas?
Com certeza, eu tenho até falado com o Roberto de Carvalho sobre a gente fazer isso junto.

Colaboraram: Arnaldo Chaves, Elias Nogueira, Emílio Pacheco e Luiz Carlos Leuenroth.
Entrevista originalmente publicada no "International Magazine" de maio de 2006.