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Entrevista

Rogério Duprat, o mestre da Tropicália
Entrevista inédita com Rogério Duprat, o maestro da Tropicália, revela opiniões sobre os anos 60.


Leandro Luiz Ribeiro

A música brasileira sofreu um revés no final de outubro. Enquanto todos os holofotes do país estavam voltados à disputa do segundo turno das eleições, o maestro e arranjador Rogério Duprat, figura marcada pelo invencionismo na fusão de música erudita e popular, faleceu aos 74 anos. Um dos nomes mais importantes da Tropicália, Duprat trabalhou com os Mutantes, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e diversos outros artistas de peso da música nacional.

Após uma carreira que foi da música clássica ao pop, Duprat refugiou-se num sítio em um bairro afastado de Itapecerica da Serra, cidade da Grande São Paulo. Os anos de estúdio exigiram muito de seus ouvidos, e o maestro se afastou da música a partir dos anos 80, limitando-se a participações esporádicas.

Trazemos em primeira mão uma entrevista exclusiva com Rogério Duprat realizada em 2002. Como ele não gostava de falar com a imprensa nos últimos anos de vida, a tarefa de conseguir algumas palavras suas para um estudo sobre os Mutantes não foi fácil. Após descobrir seu 'esconderijo', persuadi-lo a falar foi uma batalha. Com insistência, o mestre aceitou, mas 'só 15 minutos'. O papo foi ótimo e, claro, durou mais que a condição imposta.

Durante a entrevista, feita em sua casa, Duprat mostrou um humor apurado, mas também resistência a determinados assuntos. Sua dificuldade auditiva e memória falha foram facilmente superadas pela simplicidade e rica experiência na área.

Você concorda com a teoria de que nos anos 60 e 70 o mundo era muito mais inspirador para quem se dispusesse a fazer algo criativo na música?
Eu não vejo tanta diferença assim. Acho que persistem os mesmos problemas. A gente pode achar que era mais vivo o componente revolucionário; o mundo vivia um momento de grandes soluções, o fim do espírito nazista, fascista. Mas aqui no Brasil, por exemplo, nós estávamos vivendo debaixo de uma revolução muito brava, que não tinha nada de pacífica e muito menos vontade de ajudar o progresso. Acho, sim, que o jovem de hoje tem muito mais abertura, muito mais facilidade do que a nossa geração. Nós tivemos que viver Getúlio Vargas, pôxa vida, e depois uma porção de coisas desse tipo. Foi muito difícil; os dias de hoje são mais tranqüilos.

Mas você acha que a criatividade na produção musical decaiu?
Exatamente aí que eu queria chegar. Pode ser, alguns especialistas já disseram isso. Pode ser pela dificuldade que nós tínhamos até de liberdade de criação. Naquela época não tinha mil Universidades como hoje; tinha a USP e tchau. Hoje tem Faculdade até num bonde, num ônibus. (Risos) Isso cria muito mais possibilidade de trabalhos futuros. Eu não gosto de separar épocas: Ah, os anos 50... os anos 60... Todas as épocas têm lá seus componentes interessantes ou não.

Como foi a sua iniciação na música?
Eu estava cursando Filosofia na Faculdade, mas chegou no 3º ano e não agüentava mais. Eu precisava trabalhar, minha família não tinha grana. Foi aí que eu desenvolvi a brincadeira de tocar violoncelo. Rapidamente estudei feito louco para que dois anos depois eu pudesse trabalhar, e foi o que aconteceu.

Júlio Medaglia foi estudar música na Alemanha. Você chegou a ir pra lá também, né?
Eu fui para um dos festivais, não fui estudar. Eu nem podia pensar, pois já era casado; eu casei aos 20 anos. Quando recebi o convite para estudar fora, já tinha dois filhos. Eu queria ter ido, mas não pude.

Foi nesse festival que conheceu o Frank Zappa?
Foi, eu conheci o Zappa na Alemanha. Ele tinha uma banda maluca, mas durou pouco depois disso. Ele morreu cedo. Os caras da vanguarda européia foram nossos professores lá. Eles realizavam esses eventos todos os anos, colocavam as pessoas uma vez aqui, outra lá. É sempre bom fazer essas viagens, eu conheci uma porção de europeus. De repente, em uma semana, você aprende tanta coisa que nem tem como guardar.

O que você pôde utilizar dessa troca de experiências na Tropicália?
Eu já tinha feito. Não me recordo o ano, mas lembro que já levei discos comigo, uns dois ou três. Eu era diretor musical de uma gravadora aqui em São Paulo, uma gravadora do terceiro time. Quando eu fui pra Alemanha já estava no meio do caminho da 'prostituição' musical. (Risos)



Como eram os Mutantes no início?
Eu conversei com o Serginho (Dias) há pouquíssimo tempo. O Arnaldo (Baptista) foi quem reuniu os Mutantes. Eles tentaram outras formações, não foram logo de cara os três. Teve o Liminha, que se tornou um grande produtor musical. Ele era um bom músico também, mas não tinha aquela garra dos Mutantes. A coisa mais agradável na minha vida profissional foi trabalhar com os Mutantes, porque eles eram iguaizinhos ao que eu queria ter sido.

Como você conheceu os Mutantes?
Eu andei fazendo uma pesquisa com o Solano Ribeiro e mais um outro cara ... não me lembro o nome. Fizemos a pesquisa deliberadamente junto com as rádios, com os selos. O pessoal, por exemplo, da Jovem Guarda se reunia na Record, na rua da Consolação, numa das queimas de teatro - a Record tinha dessas -, e todo mundo já sabia que estávamos procurando uns caras com uma formação musical mínima, não precisava ser nenhum grande músico. Eu mesmo fiquei dez anos na vida só tocando gaita de boca, não sabia ler música. Um belo dia alguém chegou e disse: 'acho que achamos os caras que vocês estão procurando'. Aí quando começou a tocar era exatamente aquilo que procurávamos: uma coisa com cara de Beatles, mas sem ser Beatles, cantando em português mesmo. Eles faziam uma música muito legal, bem diversificada, estavam com a antena ligadíssima, sabiam já o que era harmonia de uma música. Foi uma coisa que eu gostei imensamente de ter acontecido comigo.

Como foi a realização do encontro dos Mutantes com Gilberto Gil, na música 'Domingo no Parque'?
Quem indicou o Gil foi o Júlio Medaglia, meu grande amigo. Em 60 e poucos eu tive a burrice de aceitar o convite de ir pra Brasília. Num belo dia, em 1964, acho, eu e 200 professores pedimos demissão para ir pra Brasília, porque parecia que lá ia dar certo. Ninguém suportava mais, tinha um milico em cada porta dos prédios. A gente fazia os concertos vanguardosos, que não tinham instrumento musical nenhum - era tudo feito com panela, aspirador de pó, essas coisas. Para os caras, aquilo era subversão. Aí começou perseguição: 'então, vamos embora'. O pessoal que vinha de lá dizia que tinha muita liberdade, mas na verdade não teve. Quando voltamos pra São Paulo, o Júlio Medaglia achou bom me indicar para trabalhar com o Gil. Aí começou a coisa. Do Gil passei pro Caetano e pro pessoal que era da Tropicália. Na verdade, ainda não existia a Tropicália, a Tropicália nasceu aí. Os Mutantes estavam cansados de só trabalhar com gente tipo Roberto Carlos; era daí pra baixo. (Risos) Aí eu levei os Mutantes pra tocarem com o Gil. Foi muito fácil, porque eles estavam querendo mudar de meio. Na hora de executar foi muito fácil, eles tinham boa orelha, Rita Lee com um humor maravilhoso que mantém até hoje. Na verdade, o Arnaldo era o chefe oficial dos Mutantes, mas como todas as mulheres do mundo, quem mandava era a Rita. Eu nunca vou me arrepender do trabalho com os Mutantes.

Como você via a comparação dos Mutantes com os Beatles?
A nossa praia era o Brasil, não era Londres. Os Beatles eram grandes e os Mutantes também. Na devida realidade que ocorreu no Brasil, a gente não botava muita distância entre Mutantes e Beatles. Algumas coisas eles faziam até como citação mesmo, para ficar claro. Serginho era o rei disso, fazer uma pequena citação que só os caras que estavam habituados a ouvir rock estrangeiro percebiam a gozação, a brincadeirinha. Todo grande grupo faz isso, brasileiro ou não. É pra mostrar: 'eu conheço esse cara, não pense que estou mamando aqui sem saber'.

Como era o trabalho com os Mutantes?
Eu procurava entender o mais possível qual era a intenção. Eles faziam a música e eu precisava adicionar algumas coisas, fazer alguma brincadeira talvez. Eu ia aos ensaios deles e a gente estudava junto. Eles conseguiam manipular uma linguagem musical clara, eu saía dali pra escrever direto. Eu fiz dois LPs deles inteiros, se não me engano, e mais algumas coisas em que participaram.

Você trabalhou recentemente no Acústico da Rita Lee.
Eu fiz uma música. Era muito interessante, sobre drogas. Eu tenho feito poucas coisas. Hoje, com o instrumental eletrônico, as coisas mudaram pacas. Não precisa ficar escrevendo coisas que um garotão de 15 anos faz sozinho e muito melhor. Por exemplo: 'Quero o som de trompa aqui'. Ele vai pro estúdio e faz aquilo em 10, 15 minutos do jeito que o grupo quer. Eu não tenho nada contra, absolutamente, a indústria da música mudou por causa da eletrônica.

Você costumava utilizar nos arranjos sons não convencionais que depois ninguém sabia de onde tinha saído...
Teve uma gravação do Caetano Veloso em que eu usei um pum. Foi um pum deliberado, está escrito na partitura: peido. (Risos) Era uma música meio balada, meio cantada, era uma mistura de literatura com música. Foi já quando eles estavam impedidos. O Caetano e o pessoal foram obrigados pela polícia a ir pra Bahia e depois pra fora do país - devia ter passado um ano já do 'Domingo no Parque' -, e eu fiz todos os arranjos desse período, da Nara Leão, Gal Costa, ... Enquanto eles ficaram lá, eu estava livre para completar as gravações em São Paulo, tinha liberdade total de até peido gravar, não tinha ninguém pra dizer 'não pode fazer isso'. Eu tenho um taipe do Caetano no exato momento que contaram isso pra ele. Ele ficou surpreso, não tinha percebido, sabia que tinha lá aquele ruído, mas não sabia o que era.

Qual foi a importância política dos Festivais de MPB na década de 60?
Aí você já está começando a fazer estética. (Contrariado) Não estou afim... Todos eles foram importantes, porque era o balcão que estava difícil de conseguir sozinho. Eu fui júri de uns três ou quatro. Atrás dos festivais da Record, da Globo, apareceram uma porção, Objetivos da vida. Foi muito bom que existissem. Teve aquele caso da quebra do violão (Sérgio Ricardo). Na mágica do festival, na linguagem, a vaia fazia parte. O cara se insurgir contra a vaia era pura babaquice. O autor, ou executante, tinha que entrar na jogada, a vaia era uma linguagem.

Os Mutantes também foram vaiados, né?
Também, também. Foi no 'Proibido Proibir'. Aquilo foi uma briga danada, lá na PUC, uma vaia tremenda. Eu estava regendo a orquestra, que era bem grande, e chegou uma hora que tive que pedir pros músicas saírem, pois o pessoal estava jogando pedaços de cadeira. Era o Caetano que estava cantando. Ele interrompeu a gravação e fez um discurso: 'Vocês estão por fora, vocês são uns panacas'. Aí eles ficaram mais violentos ainda.

Há quem diga que você introduziu a guitarra na MPB, na 'Domingo no Parque'. Isso é verdade?
Eu não tenho certeza, não estava preocupado com isso, saber se era o primeiro ou não. Não faço nenhuma questão de dizer que inventei ou não inventei, não interessa.

Como você analisa a revolução que o rock fez na música?
O rock fez o que todos fazem: buscou seu lugar ao sol. Hoje esse país tem um grande comércio de música, mas 30 anos atrás era muito difícil vender disco. A originalidade faz parte disso. Tem que ser original, tem que inventar. Isso já se sabia naquele tempo, não é novidade de hoje. Agora você precisa me dar um tempo, os quinze minutos já duraram muito.

Claro, obrigado!